Vivemos um tempo de sombras. Não as sombras fecundas da introspecção filosófica, mas as da alienação coletiva onde discursos se distanciam da realidade, e o Brasil real se desfaz diante das ilusões políticas que assombram a República. O título “Basta de Devaneios e Realidades Paralelas” não é mero desabafo: é um alerta urgente. O cenário político brasileiro tem sido ocupado por grupos que preferem manter-se em trincheiras ideológicas do que voltar seus olhos e ações ao bem comum.
De um lado, temos o lulopetismo dogmático, incapaz de fazer autocrítica, agarrado a uma narrativa redentora que já não encontra eco no cotidiano do povo. De outro, o antipetismo visceral, que não raro assume uma forma reacionária e irracional, extrapolando o campo bolsonarista e contaminando qualquer diálogo possível com ódio e desinformação. E entre esses extremos, encontra-se um contingente crescente de brasileiros que não se reconhecem em nenhum dos dois blocos, mas se veem reféns de uma polarização que sequestrou o debate público e interditou o pensamento.
Como já alertava Hannah Arendt, o totalitarismo começa quando a política deixa de ser um espaço de pluralidade e passa a ser dominada por narrativas únicas e autocentradas. O que está em jogo não é apenas um partido, um líder ou uma ideologia: é o próprio tecido moral da nação, esgarçado pela indiferença aos problemas reais e pela transformação da política em espetáculo e vingança.
Enquanto políticos trocam acusações e se engalfinham em disputas de poder pelo poder, o Brasil morre literalmente. Falta moradia, comida, saúde, educação, saneamento, segurança, justiça (mazelas estas vista até em Mato Grosso). As periferias continuam à margem do debate, e o sofrimento concreto do povo é silenciado por vozes que preferem manter-se fiéis a mitos do que encarar os números, os corpos, os dados, a miséria. O filósofo Emmanuel Lévinas já dizia que a ética começa no rosto do outro e neste país, parece que ninguém quer mais ver o rosto de ninguém.
A ausência de uma política verdadeiramente voltada ao bem comum está matando pessoas e destruindo laços. Famílias divididas, amizades rompidas, espaços de diálogo implodidos por identidades políticas absolutizadas. A esquerda e a direita tornaram-se igrejas dogmáticas onde discordar é heresia e pensar é traição. Como já propunha Karl Popper, uma sociedade democrática deve ser feita de críticas, de revisões, de constante vigilância sobre si mesma algo que parece cada vez mais distante no Brasil.
O momento exige responsabilidade, lucidez e coragem moral. Não se trata de neutralidade, mas de uma ética pública comprometida com a vida e com a justiça. É preciso sair do ciclo de idolatrias e rejeições absolutas, romper com o moralismo seletivo e com a negação da realidade. Chega de devaneios revolucionários ou restauradores: o Brasil precisa ser governado (pelos três poderes) com seriedade, com técnica, com compaixão e com visão de futuro.
Nosso compromisso não pode ser com líderes ou legendas, mas com o país que agoniza enquanto seus representantes se perdem em jogos de poder e retórica vazia. Basta de realidades paralelas: o povo não vive no Twitter, no Instagran, nem no Planalto, nem em gabinetes blindados. O povo vive nos espaços do labor diário empregando ou empregado, na fila do hospital, no transporte precário, na escola abandonada, no desalento das ruas.
Como cidadãos, como seres morais, temos o dever de romper com essa lógica doentia. Que venha o debate, que venham as diferenças, mas que retornemos ao centro: o Brasil real, o Brasil esquecido, o Brasil possível, o Brasil essencial é maior que os egos doentios e inflamados que ocuparam espaço as bancadas da vida paralela e da ganância.
João Edisom de Souza é professor de ciências políticas